O Corpo humano tem limites em seus movimentos. Alguns membros com possibilidades mais amplas, como a coluna, ombro ou o punho, enquanto outros são mais limitados, como o joelho e cotovelo, por exemplo. No entanto, a combinação desses movimentos torna as possibilidades infinitas. Nossa mão consegue alcançar as costas pela combinação de movimentos: o ombro gira para trás, o cotovelo flexiona tornando possível o punho e dedos tocarem para aliviar uma coceira hipotética.
O Jiu-Jitsu é como um quebra-cabeça do corpo, onde buscamos a combinação e encaixe com o adversário, para que então consigamos alcançar o objetivo em uma luta, sendo esse de domínio ou subjugação. As técnicas no Jiu-Jitsu partem de uma base sólida, com grande variedade, mas simples.
Assim como "coçar as costas" é feito pela combinação de movimentos simples, a combinação dessas técnicas básicas, permitem uma variedade infinita de posições que podem levar ao desenvolvimento de uma nova forma de enxergar um aspecto da luta, seja na intenção de derrubar (quedas), dominar por cima (passagem de guarda) ou sair de baixo (fazer guarda).
Minha experiência no tatame me permitiu ter alguns momentos de "visão", ou criação, dessas possibilidades, que me diferenciaram de outros adversários. Em cada sequência técnica que surgia lutando, me fazia pensar mais profundamente nela, fosse repetindo-as no próprio treino ou mesmo em pensamentos fora do tatame, até começar a ter sucesso na academia e finalmente conseguir botar em teste nos campeonatos, onde pode ser considerado que aquilo realmente furou a bolha do meu círculo para se provar eficiente no "mundo real" da competição.
Como um inventor, ou mesmo um poeta, que se inspira e que vai se aperfeiçoando, muitos praticantes tem esses momentos de "epifania", sendo possível que suas criações algumas vezes revolucionem algum aspecto do esporte, desde que não fiquem perdidas no tempo até que alguém, em outro lugar ou circunstâncias, volte a descobri-las
Considero a Guarda Y uma contribuição, uma nova forma e alternativa de ver a defesa de guarda. Uma dessas combinações de técnicas revolucionárias, servindo de transição defensiva ou ofensiva para quem se encontra por baixo de alguém em uma luta.
Fazendo o exercício mental de quando comecei a usar essa combinação, percebi ter sido um processo lento e evolutivo desde meus primeiros anos de faixa preta, ainda em 2002. Sendo apontado como especialista em "meia-guarda" desde essa época, percebi que me via sem saída toda vez que meu adversário conseguia equilibrar o peso em cima de mim ou começava a ficar em pé. Mesmo buscando uma transição para guarda X, originalmente vinda da raspagem popularmente apelidada de "Joga-fora-no-lixo", pelas minhas aptidões físicas perdia o controle ou tinha dificuldades de me levantar e conseguir concretizar a inversão (raspagem).
Em um processo exaustivo de tentativa e erro, eventualmente percebi que ao fazer a troca da perna do meu adversário de um ombro para o outro, aquilo me desbloqueava movimentos antes impossíveis e aquela simples adaptação abria uma nova gama de possibilidades que antes não podiam ser vistas. Era como se antes estivesse tentando coçar minhas costas sem usar a rotação dos ombros e depois tivesse acrescentado essa possibilidade. Agora tinha acesso a todos os pontos das minhas costas antes inalcançáveis.
Ao enxergar essa porta escancarada, pude combinar aspectos aprendidos de muitos outros companheiros de treino, como por exemplo detalhes sobre a guarda 5050 aprendidos com Ryan Hall, ou de outras situações como guarda fechada, o controle "lock-down", meia guarda (com fortes influências que tive do Comprido, apesar de nossa diferença no tamanho) entre outros aspectos de conhecimento já consolidados, de uma maneira única e criativa que nunca havia visto ninguém usar.
Surpreendi meus primeiros adversários com essa combinação única desde campeonatos em 2005, ainda de forma tímida, em processo de evolução e fui ensinando aos poucos nos meus seminários, conforme eu mesmo ia acrescentando detalhes até ter um "sistema completo", com reações e soluções possíveis a cada movimento do adversário.
Naturalmente a ideia foi se espalhando. O nome "Guarda Y" foi dado por meu amigo e aluno belga Ken Van Gilbergen, por volta de 2012, que fez uma brincadeira ao comparar com a guarda X, justificando que meu corpo se posicionava de uma forma que parecia o Y. Na ausência de outro nome, esse se popularizou.
Quando percebi que havia desenvolvido um estilo único, tentei encontrar outras pessoas que pudessem estar fazendo coisas similares mas, quanto mais procurava, mais entendia como tinha em mãos uma solução rara e valiosa. Percebia que mesmo atletas dos mais altos níveis, quando se encontravam no posicionamento que permitiria usar aquela sequência, seguiam outro caminho por não enxergarem as possibilidades que enxerguei.
Conquistei várias medalhas com a ajuda da guarda Y e quanto mais ensinava e procurava espalhar aquele entendimento, mas me especializava no assunto, ao mesmo tempo que tinha a satisfação de ver companheiros de treino, alunos diretos ou indiretos obterem vantagens sobre os atletas que ainda não entendiam o que estava sendo feito. Ainda nos dias de hoje, seja nas competições ou apenas nos treinos de academia, vejo que quem se dedica a entender os passos e etapas possíveis com a guarda Y, consegue surpreender os adversários ou parceiros de treino.
O tempo vai passar e não me importa que um dia não saberão que eu fui o primeiro a colocar essa sequência junto. Isso, na realidade já pode estar até acontecendo nesse momento. Nas técnicas de Jiu-Jitsu não existem direitos autorais, ainda bem. Prefiro que as técnicas sejam como frases motivacionais que se espalham por aí, entre aspas, escrito em baixo "autor desconhecido". Tudo bem, desde que eu fique sabendo que um dia, alguém, talvez do outro lado do mundo, venceu um torneio local em sua cidade com a guarda Y, mesmo que lá ela nem seja chamada desse nome, mas que os ventos sopraram fortes suficientes para entrar na cabeça de um novo praticante que nunca ouviu falar no meu nome.
Será que não foi sempre assim? Será que não foi assim, através de um desses ventos, que chegou na minha cabeça? Quase torço para que sim. Afinal, certamente a roda não foi descoberta em um só lugar.
Texto escrito por Felipe Costa (@FelipeCostaBJJ)