Prepare-se para o pior.
Não me considero pessimista.
Essa frase inicial, tampouco, nunca foi para mim um lema.
Olhando em retrocesso, acho que nunca parei para pensar de verdade nessa simples frase antes desse momento que estamos vivendo, mas foi só começar a refletir um pouco para perceber o quanto ela pautou minha vida e já há quanto tempo.
Impossível fazer essa reflexão sem passar pela minha vida esportiva e, vasculhando minha memória, fui notando que nos meus pequenos atos ia adotando essa filosofia inconscientemente. Pelo menos, não me lembro de alguém ter me verbalizado isso, mas certamente exemplos familiares e de amizades ajudaram a reforçar algo que imagino, sem nenhuma certeza, ser uma característica de nascença.
Me lembro desde novo fazendo questão de chegar pontualmente nos treinos, mesmo tendo dificuldade com a parte física da aula, pois na minha cabeça estaria trapaceando se chegasse na hora do treino menos cansado que meus companheiros.
Sempre busquei me colocar e treinar contra os pontos fortes de cada colega, pois se me fortalecesse diante da dificuldade estaria melhor preparado para o momento real do desafio.
NUNCA, e bato no peito com orgulho, pedi para descansar entre treinos ou se alguém ainda estivesse treinando, antes de me tornar campeão mundial na faixa preta. Depois aprendi que isso não é sempre a melhor forma de treinar, mas foi bom para blindar a mente para as adversidades e me preparar ao menos psicologicamente para o pior.
Estar cansado nunca foi desculpa para deixar de fazer o que precisava ser feito. Estar com dor, nervoso ou com medo, nunca foi o suficiente para me fazer deixar de enfrentar minhas dificuldades.
Aprendi a, diante da adversidade, ignorar momentaneamente os problemas e entrar de cabeça com aquilo que tinha disponível no momento. Um exemplo, ainda no esporte, me vem a cabeça e conto resumidamente para ilustrar:
Mundial de 2012, faixa preta, peso galo, já com os meus 35 anos, ainda lutando na categoria adulto. Nas oitavas de final, venci a luta por 8 a 0 mas, durante uma movimentação, sofri uma grave torção no joelho. As quartas de final era só no dia seguinte, o que pode parecer bom, mas nesse caso era ruim, ao esfriar a dor viria e veio. Já cheguei no hotel mancando e virei a noite acordado, com muitas dores, tentando amenizar com compressas de gelo.
A preocupação estava estampada no rosto de todos que me acompanhavam.
Meu adversário seria um jovem japonês que havia me vencido 3 meses antes, não seria fácil vencer lesionado, alguém que havia me ganho sem lesão, mas a mentalidade do dia a dia de me colocar e me preparar para o pior, me levou aquele momento com serenidade.
Apesar da grande dificuldade e dor, já saí do carro, no estacionamento do ginásio na California, sem mancar e com cara de quem estava entrando no tatame, ninguém ao me olhar seria capaz de imaginar minha dor ou que estava virado sem dormir.
Foco total e pronto para encarar o pior. A luta foi dura, mas saí vencedor.
Não tive condiçōes de continuar e abri passagem para um grande amigo. Foi meu penúltimo mundial de adulto, conquistando minha oitava medalhas no Mundial IBJJF de faixa preta adulto, em um total de 9 medalhas que viria a conquistar em 11 anos de faixa preta.
Não sei dizer se essa mentalidade no esporte transbordou para vida ou o contrário. O fato é que pautou muitas decisōes:
"O que de pior pode acontecer?" passou a ser uma pergunta verbalizada ou ao menos pensada em muitas situaçōes. Familiar no hospital, cachorro no veterinário, lesōes, decisōes profissionais e financeiras foram sempre pautadas por indagaçōes de qual seria o pior cenário e quais as opçōes para lidar com ele.
Financeiramente sempre fui muito pé no chão. Isso sim tem grande influência familiar, mas um tanto de personalidade. Ainda criança lembro de brincar com amigos daquele jogo Roleta, onde simulava as apostas de cassino. Meus amigos se arriscavam muito e mesmo sabendo que era brincadeira, nos meus 9 ou 10 anos apostava a maior parte na cor, ou par/impar, que para quem lembra são as opçōes de menos risco e menos rendimento.
Há cinco anos, surgiu a possibilidade de assumir e liderar uma academia em Ipanema, bairro que cresci. Não havia nada de seguro na aposta de estar a frente dessa academia. Havia indícios de que eu teria muito trabalho e pouco lucro.
Eu podia ter continuado com minha vida, sem arriscar as economias familiares, mas apostei em um ciclo natural de minha carreira esportiva. Em decisão familiar, concluímos que valia aproveitar a oportunidade que se apresentou.
Investi tempo e dinheiro. Consegui com ajuda dos que foram se tornando parte da equipe e principalmente com os alunos fiéis, aos poucos consolidar o nome da academia e nos consolidar como referência para estrangeiros que nos visitavam de muitos lugares do mundo. Um objetivo difícil e ainda com muito espaço para crescer.
Somos a academia com melhor número de avaliações 5 estrelas no Rio, talvez no Brasil. Depoimentos reais e honestos de alunos e visitantes internacionais.
Ainda assim, mesmo com sucesso aparente, a academia sempre sofreu com altos e baixos financeiros e, apesar de ter alguns meses animadores, houveram anos que só deu para empatar a conta .
Há vantagens além da parte financeira. A academia e meus alunos dedicados se tornam uma importante vitrine para consolidar meu prestígio como professor e fortalecer onde tenho mais rendimento: as viagens para dar seminários. Fortalecem, mas não são fundamentais. O que me traz maior alegria é ver que, através desse negócio (portanto, de mim), muitas outras pessoas estão tirando sustento ou fortalecendo a renda familiar. Acreditem ou não, esse pensamento pesa tremendamente na balança quando opto por seguir adiante.
Chegamos no momento atual: Pandemia do Coronavírus, situação sem paralelo no mundo.
Naturalmente, entro no modo defesa e começo a analisar a situação por todos os prismas e a pensar em cada cenário possível. Não me baseio em achismo. Cada possibilidade que pensei é real de acordo com informações que o mundo tem até o momento e conversas com professores de outros lugares do mundo, onde a epidemia chegou antes ou está para chegar.
Quando estou treinando para uma competição de Jiu Jitsu, nunca parto do princípio que será fácil. Sempre treino esperando que meu adversário será mais técnico, mais forte, mais flexível e mais explosivo que eu e sempre ele é, ao menos, em algum quesito de fato superior. Vou além, imagino que se eu conseguir passar do primeiro, os seguintes serão ainda melhores que o anterior.
Isso me faz querer treinar com os melhores presentes no tatame, me faz dobrar o foco quando estou cansado e, antes de iniciar cada "rola", mesmo exausto, pensar que nāo posso esmorecer, pois estarei me sentindo pior na hora da luta.
Eu me preparo para ser o melhor, no meu pior dia.
Não significa que eu ganhe todas, longe disso, como vocês bem sabem. Mas em geral, quando ganho, saio com a sensação de que o treinamento foi muito mais sofrido que o campeonato.
É assim que estou me preparando para a pandemia.
Respire fundo.
Primeiro vale frisar que não estou escrevendo um artigo científico, então serei vago, mas falarei o suficiente para explicar meus receios e conclusōes.
O que me parece é que a comunidade de Jiu Jitsu não se deu conta do que isso pode significar para o futuro do esporte. O que mais vejo são pessoas ansiosas para que as autoridades simplesmente autorizem a abertura da academia, com a ilusāo de que no dia seguinte tudo vai voltar ao normal.
Acho que haverá dois caminhos, os incautos que voltarão , seguirão suas vidas normalmente e se verão forçados a voltar atrás quando se derem conta que alguém próximo está doente, ou pior, em estado grave.
No outro extremo, os medrosos, ou precavidos, que por serem de grupo de risco ou conviver com quem seja , simplesmente não arriscarão a frequentar o tatame ou não permitirão que seus filhos o façam.
Os que já treinam, sim, pela paixão, certamente se colocarão em alguns momentos de risco, para ter o prazer da prática. Mas qual a chance de alguém que nunca fez, começar a treinar sabendo dos riscos? Eu diria que as mesmas de alguém se interessar em aprender a surfar em uma praia de Pernambuco, que tem ataques esporádicos de tubarão. Quem vai pagar para ver? Tenta argumentar que "houve apenas 65 ataques nos últimos 28 anos" e vê quantos você convence.
Enquanto não surgir tratamento seguro ou vacina, acabaram-se os campeonatos ou, na melhor das hipóteses, será para poucos.
"Exagero!" - podem argumentar, "Apenas 5% da população tem sintomas gravíssimos". Mas entre esses, a taxa de mortalidade é de 50% e entre os que tem sintomas considerados graves, a taxa é de 15%.
Você acha pouco?
Se você joga seu dinheiro na megasena, por exemplo, acreditando que tem chance de ganhar e as chances são de 1 em 50 milhōes, você tem que ter pavor das suas chances percentuais de pegar ou transmitir para alguém de risco o famigerado coronavírus.
Sem tratamento ou vacina, para fugir do cenário catastrófico temos uma possibilidade: Que os testes rápidos, com resultado em 5 minutos se tornem tão baratos e acessíveis que valha a pena testar cada indivíduo antes dele entrar no tatame.
Seria o equivalente a camisinha para proteger contra as DSTs. Alguns lugares não serão rígidos, tenho certeza, mas atrairão o público que escolheram com essa decisão e no momento que surgir um foco e a notícia de alguém com sintomas graves, se verão obrigados a voltar atrás.
Com os testes rápidos, campeonatos podem voltar a acontecer.
Serão também obrigados a voltar atrás aquelas academias que se compararem com comércio normal, como uma loja de roupas ou perfumes e voltarem tão logo haja permissão do governo. Os praticantes e proprietários de academias de luta terão que entender que não somos um atividade de comércio normal e, se fingirmos ser, se hipoteticamente a coisa for tão ruim como estou me preparando, o preço pode ser alto e a consciência de quem é de boa fé vai pesar.
O cenário favorável é surgir rápido um tratamento ou vacina.
Aí tudo volta ao normal. Daqui a alguns anos vou me esbarrar nesse texto e rir, com alívio.
Estudos dizem que a vacina vai demorar no mínimo de 12 a 18 meses, mas nunca se sabe.
E claro, para ser coerente, tenho que considerar a hipótese de ser, de fato, "somente um gripezinha", um jogo politico e basta termos fé que vamos passar por isso.
Mas me recuso a sentar e torcer. Prefiro beirar a paranóia, mas ter um plano para cada situaçāo, mesmo sabendo que, como diz o ditado, "O homem planeja e Deus ri."
Lembrem-se, estou especulando, não estou fazendo uma previsão. Estou apenas me preparando para o pior cenário e torcendo para tudo isso passar logo e ter aquela sensação que experimentei em cada conquista: de que a preparação foi bem mais difícil que o desafio em si.